Alguns desconfortos
Tudo que o sol alcança ou não é uma forma de ganhar dinheiro. Reciclagem e roubo de vídeos, tweets e memes, seja para estampar com um selo de site de apostas, links de afiliados de diversas lojas, seja para fazer um compilado que eventualmente levará à valorização de uma postagem sobre determinada marca. Ou então um design genérico com frases rasas e mais genéricas ainda, uma cor pastel, algumas formas vazadas em baixo contraste e voilà, seu próprio outdoor virtual.
Os memes que por diversas vezes ilustram esses outdoors inicialmente se davam com tirinhas, modelos pré prontos, e posteriormente a categoria se ampliou. Com a jornada mundial para o fundo do abismo no capitalismo tardio, não só os memes como cada pedaço do ser humano acabou por afundar nesse buraco e dele emergiu essa criatura híbrida de ser e produto. Para enumerar alguns exemplos: lembranças da infância, programas, séries e filmes da época, que depois abriram espaço para o mercado da nostalgia, saindo do modelo inicial de tirinhas de 4 quadros. Além disso a identificação e fusão tão grande do ser humano com o que ele usa ou gosta ao ponto de uma resenha negativa sobre um mero hidratante labial ser tomada como ofensa pessoal.
Assim, não só objetos, como memórias e experiências coletivas também foram monetizadas. Por que não usar nossa datação por carbono-14, sabe? Seria até mesmo uma simplificação do que é o padrão, um prato cheio para aqueles que são movidos pelo lucro, pois aqui não necessariamente existe um produto físico a ser oferecido a uma faixa etária. A faixa etária em si é o produto. Se antes explodiam páginas no Facebook, sobre vida de estudantes de ensino médio, ou posteriormente da vida na universidade, enquanto na outra ponta começavam timidamente páginas com humor boomer para aqueles acima dos 50 ou 60 anos surgiam, agora vemos no Instagram diversas páginas voltadas ao público na faixa dos 30 anos.
Quando você se recusa a usar redes sociais do jeito que ela foi projetada (vendas) e usa para o uso tradicional da internet pré propaganda (contato e interação com conhecidos), como no MSN ou no Orkut, começa a emergir algo que apenas pode ser descrito como a zumbificação de pessoas próximas. Talvez não seja o termo ideal e alguns vejam até como exagerado, mas quando olhamos ao nosso redor, quantas pessoas já foram afetadas pelo pensamento de que o quanto nosso sistema cardiorrespiratório já funcionou de algum modo tem ligações com hobbies e determinados maneirismos?
Para dar um exemplo simples: fazer crochê, assistir aos programas do domingo pela manhã e apreciar o sabor dos mais diversos chás enquanto mergulha num livro. O que era mera nota de rodapé na ficha de um personagem recém encarnado agora se transforma em laudo médico a partir da ótica do outro. “É… você foi diagnosticado com um caso sério de ‘trintar’”.
Caso não esteja claro, não acredito que exista ofensa em uma simples constatação de quanto tempo tem que a poeira estelar tomou esta forma, o que ofende é a falta de criatividade, a limitação exibida ao tratar do assunto, como se fosse uma espécie de cercado intransponível que cada vez mais comprime o sujeito. O grupo de receptores x reprodutores de memes de 30 anos (cuja personalidade consiste em ter 30 anos e expor ao mundo sua falta de energia) parece não perceber que sua condição seria sintoma da escala 6 x 1, desrespeito à jornada contratada ou ainda, falta de cardio. Com certeza é idade, pode acreditar, carimbar, atestar e dar fé pública.
Por fim, para não dizer que a personalidade daquele que aponta se restringe à nossa quantidade de translações completas, essa insipidez vem acompanhada de um senso de nostalgia inigualável, intragável e interminável incapaz de descobrir o mundo ao nosso redor e tudo de novo que há, tornando o seu redor em terra desolada, pois a cultura não consegue florescer quando o foco é se fechar para tudo que não seja alguma mídia que deu seu suspiro final quando o DVD ainda engatinhava.
Já na área de moda e beleza, se nos anos 2000 as revistas, quando não estavam preocupadas em espalhar transtornos alimentares aqui e acolá, traziam um importante conselho: experimente e ache seu próprio estilo, filosofia que deu certa sobrevida às contraculturas e chegou a dar a luz ao emo e se esticarmos essa definição de “anos 2000”, talvez até o indie possa conquistar uma menção no texto.
Claro, essa época já cedeu ao pêndulo fashion e retornou num mundo facho, terreno oposto ao de suas origens, e a autenticidade dá lugar à uma interminável torrente de regras, com autointituladas influencers “elegantes” ditando o que pode ou não ser usado, e uma legião de pessoas sem senso próprio de estilo as seguem cegamente,verdadeiro batalhão pronto para coibir quem ouse se libertar da forma. Quem não se lembra de quando uma blogueira com estilo que dialoga com o alternativo e colorido foi atacada por montar um look com… uma camisa da Hello Kitty. O policiamento sobre corpos nunca teve um contingente tão grande.